terça-feira, 17 de janeiro de 2006

Clubes do sul vêem cartão vermelho

Com o Vitória de Setúbal a viver no fio da navalha e a morte do futebol profissional no Farense, são cada vez menos os clubes do Sul a darem toques na bola. Uma hecatombe sem fim à vista, acentuada nas últimas três décadas.

Jorge Madeira agarra-se à vedação enferrujada do Estádio de São Luís. Apoia os cotovelos no gradeamento e espreita por entre aqueles quadradinhos de onde noutros tempos via grande futebol. O relvado está deserto, as bancadas vazias, os holofotes apagados. Um silêncio sepulcral invade o recinto, cortado a espaços pelo latir dos seus cães, trancados num anexo a poucos metros de distância.

Olhos fixos no vazio, a mente salta os muros do estádio, viaja por aquela altura em que palmilhava a Europa num camião de longo curso. Passaram 20 anos desde que se deixou de tal vida para vestir a camisola do Sporting Clube Farense, tornar-se pau para toda a obra. “Nesta casa já fui homem dos sete ofícios. Estive como porteiro, fui mulher de lavandaria e de limpeza, roupeiro, motorista, guarda, e hoje cuido da relva. Só me falta ser médico.”

A nostalgia invade-lhe o rosto. Apesar da dureza da labuta, estava melhor agarrado ao volante, pensa para com os seus botões. Se soubesse as partidas do destino, nunca tinha abandonado o asfalto. Agora passa por aflições. Vai para nove meses que o ordenado não lhe cai nas mãos. As dívidas amontoam-se no restaurante onde mata a fome e morre de vergonha por não saber quando poderá pagar a factura.

Os olhos enchem-se de lágrimas ao falar de um recente jejum de três dias, quando o estômago lhe abraçou as costas. “Já viu o que é um tipo ser obrigado a mendigar por dez euros para comprar umas carcaças e 200 gramas de queijo e fiambre? Em 55 anos passei muitas crises, inclusive aqui, porque os problemas económicos não são novos, mas nenhuma tão grande e profunda.”

Jorge sente como ninguém o descalabro desportivo do Farense. Mora num cantinho do estádio há duas décadas, preso a quatro paredes onde o luxo se fica por uma televisão e uma máquina de lavar roupa. Foi dali que assistiu a grandes futeboladas, quando os ‘três grandes’ enchiam as bancadas. “A minha maior alegria foi ver o clube ganhar várias vezes ao Benfica. Aquilo é que eram tempos de ouro.”

Fernando Nobre, vice-presidente do Farense, também presenciou as batalhas de David contra Golias. “O meu pai tinha um historial muito grande neste clube, como enfermeiro e massagista, e quando ele morreu deixou-me o espírito de ajuda à instituição. Há 20 anos comecei a tratar esta casa como a criança que vi nascer, que passou pela adolescência, pela idade adulta e que agora está numa fase de velhice, prestes a morrer”, dizia a poucos dias do anúncio oficial do fim do futebol sénior.

Antes de enveredar pelo dirigismo, Fernando podia ter-se feito valer do curso de fisioterapeuta. Teve vários convites para mudar de ares, rumar à Luz, mas preferiu assentar arraiais no Sul, sentir ao vivo os intensos momentos de futebol no São Luís. “Houve muita alegria e muito choro neste estádio. Foram anos maravilhosos, de glórias, entre elas a ida à final da Taça de Portugal e às competições europeias. Hoje reconheço que a estrutura era muito pesada e que estamos a discutir tostões que naquela altura tinham sido muito importantes e não foram poupados.”

A fatiota de novo rico, corte fino, direitinho, que o Farense usou há uma década, quando espantou tudo e todos com um quinto lugar na tabela classificativa, não condizia com a sua verdadeira condição económica. E está gasta, coçada, rota mesmo. Ainda assim, em dois anos e meio a actual direcção conseguiu travar o descalabro financeiro, saldar algumas dívidas, adiar o enterro de um ‘doente’ terminal.

Desde a descida abrupta aos escalões inferiores que a história se repetia: no início de cada temporada os juniores assumiam o papel de seniores, até haver dinheiro para pagar as dívidas ao fisco. Este ano agigantaram-se ao cometerem a ousadia de aguentarem o ritmo desenfreado de jogos ao sábado e ao domingo durante sete jornadas. A história foi escrita assim até Pedro Moreira, treinador dos miúdos, dizer basta. “Esticámos a corda ao máximo, os índices físicos baixaram e às tantas tornou-se complicado aguentar dois campeonatos. Apareceram as lesões, as expulsões, e fomos perdendo atletas por causa de um escalão que não era o nosso. Era impossível continuarmos. ”

Cedo se percebeu que os jovens eram actores no filme errado. Apesar do esforço, os jogos na série F da Terceira Divisão em nome de uma equipa sénior fantasma, que treinava mas oficialmente nunca chegou a aparecer, mostraram-se dignos do programa ‘A Liga dos Últimos’: seis derrotas e uma vitória, dois golos marcados e 25 sofridos.

A oito quilómetros dali, em Olhão, respira-se ar mais saudável. O clube local faz uma longa travessia no deserto desde 1975, último ano em que militou na Primeira Divisão, mas não tem problemas de tesouraria e está em terceiro lugar na Liga de Honra. Isidoro de Sousa, 48 anos, responsável pelo departamento de futebol sénior, conta duas décadas ao serviço da instituição e orgulha-se de ter resistido à hecatombe que varreu o Sul. “O Olhanense passou um mau bocado mas hoje está bem de saúde, principalmente porque assegurámos sempre o património. Somos muito conservadores, crescemos com os pés assentes na terra”, explica.

Com a revolução em marcha, a ideia é transformar os ‘rubro-negros’ numa referência no panorama futebolístico em pouco tempo. Assim queiram os bons ventos do Mediterrâneo e a fé dos homens. “A breve trecho vamos constituir uma SAD, que passa pela aposta forte no futebol profissional e numa subida à Primeira Liga”, diz, convicto de que o Algarve poderá ter outro clube entre os grandes.

Olhanense e Portimonense (também na Liga de Honra) são casos raros por aquelas bandas, a remarem sozinhos contra a maré. A culpa de descalabros alheios está, segundo Isidoro, na inconsciência das pessoas que dirigem os clubes. “Muitos delapidaram o património, endividaram-se, construíram orçamentos maiores do que podiam. Agora pagam a factura. Nós, pelo contrário, acautelámos a questão financeira, com a máxima de que se temos dez nunca podemos gastar 15.”

Nos confins do país, encostada à fronteira com Espanha, Campo Maior também já sentiu a amargura de perder o futebol profissional. O adeus ao escalão principal aconteceu em 2001, quando o 16.º lugar na tabela levou João Nabeiro a colocar um ponto final numa bem sucedida aventura pelos relvados, voltando à estaca zero.

Quinze anos antes, ao assumir a presidência, herdara do pai, Rui Nabeiro, uma dívida de 60 mil contos e um emblema à espera de alguém que o empurrasse para cima. A tarefa trouxe-lhe muitas dores de cabeça e custou rios de dinheiro, nunca compensados pela venda diminuta de ‘merchadising’. Os ‘leões’ sofreram uma mutação, transformaram--se em galgos e nem assim se venderam mais ‘t-shirts’ ou se encontraram fontes alternativas de receita. “Tentámos de tudo, mas perdemos capital. Posso mesmo afirmar que durante o período em que o clube esteve na Primeira Divisão devo ter investido aqui entre três a quatro milhões de contos. Qual foi o retorno disso?”, questiona o ainda hoje presidente do Sporting Clube Campomaiorense antes disparar a resposta: “Praticamente nenhum.”

Paredes-meias com Badajoz, a pequena localidade de dez mil habitantes já não vibra com o rebuliço das centenas de forasteiros que quinzenalmente assistiam às jogatanas no Estádio Capitão César Correia, enchiam restaurantes e cafés, davam vida à terra. Pior, o cenário tristonho tornou-se perigosamente indiferente em quatro anos, porque João deixou de interpretar o papel do carola que injectava dinheiro sem olhar a meios para se transformar no empresário cauteloso que não podia perder mais: “Quando decidi acabar com o futebol profissional o presidente da Liga, major Valentim Loureiro, telefonava-me quase todos os dias a pedir para não fazer isso, a argumentar que devia aguentar mais uma época. Mas eu é que punha aqui o dinheiro, eu é que estava a perder, tinha uma situação deficitária e não dava para sustentar isto por mais tempo. Era uma bola de neve que tinha de ser travada.”

Hoje, o Campomaiorense tem 20 empregados, um orçamento modesto, mas continua a dar prejuízo. João é incapaz de fugir ao destino e continua a colocar dinheiro para saldar as dívidas, normalmente a rondarem os 25 mil euros mensais. “Ontem como hoje têm sido os Cafés Delta a tampar o buraco financeiro. O clube está nas mãos deste ramo da família Nabeiro há 40 anos e só a ligação afectiva faz com que continuemos aqui.”

Com a questão do regresso à Primeira Liga posta de lado, o solitário mecenato consegue manter apenas as camadas jovens. Uma sorte. Que o diga Tiago Rasquete. Aos 18 anos, o guarda-redes dos juniores palmilha todos os dias 70 quilómetros para poder usar as luvas e não se lembra de ver os galgos morderem na Primeira Divisão. “Não estava cá nessa altura, era muito novo. Venho de longe, estou aqui vai para dois anos e é um bocado triste não termos nenhuma equipa do Alentejo no topo.”

Habituado a dividir o futebol com a escola, Tiago vale-se do gosto pela modalidade para continuar a correr todos os dias uma verdadeira maratona. O ano passado chumbou a Matemática, único tropeção em 12 anos de estudo. A acabar o secundário há noite e prestes a arranjar emprego, espera conseguir conciliar todas essas actividades para atingir o seu sonho: jogar no Benfica.

Manuel Henrique leva 22 anos de futebol, 20 dos quais com o símbolo do Campomaiorense ao peito. Actualmente coordena os juniores, dá-lhes ânimo para enfrentarem a adversidade, pensarem que a carreira não tem de acabar na fronteira. “Estamos para aqui desterrados mas tento incutir-lhes a ideia de que estão a ser formados para outros. Há alguns exemplos de sucesso e isso ajuda a motivá-los, embora não possa negar que existe um vazio difícil de gerir”, confessa. Todos os anos, os 22 jogadores do plantel repetem em uníssono: “Vamos começar com os seniores?” Manuel chuta a resposta para canto afirmando não depender dele, “porque se assim fosse eles já estavam a jogar, nem que fosse nos distritais.”

A razia aos clubes a Sul do Tejo tornou-se uma realidade cada vez mais dura desde o 25 de Abril de 1974. A Revolução dos Cravos não lhes fez bem, a começar por alguns dos que estavam encostados ao rio, então habituados a uma pequena travessia para defrontarem os gigantes do futebol nacional.

No mercado do peixe do Barreiro, Francisco Costa recorda a altura em que a cidade se engalanava de cada vez que o principal clube da terra recebia o Benfica, o Sporting e o Porto. Sócio ferrenho do Barreirense, assistiu de perto àquele período de ouro. A alegria da última subida à Primeira Divisão, em 1978, ainda faz parte das suas memórias. “Foi uma doidice. Andámos aí com os carros até às tantas. Parecia que Portugal tinha sido campeão da Europa. Lembro-me que ganhámos o último jogo em Almada, por um 1-0, com o golo do Arnaldo, um grande jogador.”

Foi sol de pouca dura já que na época seguinte o Barreirense desceu, para nunca mais voltar. Agora, na Liga de Honra, renasce a esperança. Está quase. “É possível, embora difícil, mas tenho de reconhecer que seria uma alegria enorme. Não queria morrer sem ver isso tornar-se realidade.” A uns quantos quilómetros de distância, o Clube Desportivo do Montijo também olha o Tejo mas não partilha tamanha esperança. Desde 1977, quando abandonou o escalão maior, que nunca mais se recompôs. Depois de vários anos na Segunda Divisão B, bateu no fundo do poço – parece quase impossível saltar da Terceira Divisão.

Carlos Dias esteve presente nos bons e nos maus momentos, antes como vogal, agora como presidente da colectividade, que se afundou nos anos em que ele decidiu afastar-se. “Entristece-me a situação actual. Se o futebol acabar o que vai acontecer a esta cidade, o que vai ser desta população ao domingo à tarde, único momento em que se vê alguma felicidade nas pessoas? Se não houver jogo isto é uma terra morta, fantasma.”

Noutros tempos o Montijo arrastava 20 ou 30 autocarros para as deslocações de Norte a Sul do País. Hoje nem dez automóveis compõem a caravana. O património, muito e valioso, desapareceu em passes de magia. Falta encontrar o ilusionista que deixou apenas um milhão e 500 mil euros para pagar aos fisco. “Quando aqui entrei fui à procura de papéis que justificassem tamanho prejuízo mas desapareceram. Muita gente deve ter ganho dinheiro à custa do clube. Só aceitei esta posição porque há aí uma facção interessada em ver isto fechado. Não lhes vou fazer a vontade.” No Montijo, ainda é a sua carolice que mantém o clube vivo.

JNPC

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